Amanheceu no oitão do hotel de Jeremias um caminhãozinho tipo F-4000. No painel alguns cartazes com a foto de Luiz Gonzaga. O comentário logo se espalhou pela minha quase bicentenária Icó-CE (169 anos): O Rei do Baião estava nos visitando naquele dia 24 de dezembro de 1968, para cantar no circo de Javém. Ele tinha acabado de completar 56 anos no dia 13. E eu, que também faço aniversário nesse mesmo dia, estava com 13 anos de idade. Para quem já cantava muitos sucessos do Gonzagão nas reuniões escolares e nas festinhas entre amigos, essa coincidência de aniversários era de uma importância muito grande. Na hora que eu soube dessa notícia fiquei rondando o hotel, naquela expectativa de conhecer o meu grande ídolo. Cerca de 100 curiosos também se aglomeravam na calçada com essa mesma finalidade. Alguém perguntou: “Sr. Jeremias, é verdade que Luiz Gonzaga vai cantar no circo hoje?” Ele respondeu: “O Sr. Javém, dono do circo, está negociando com ele. Luiz está querendo 60% da bilheteria e Javém ofereceu 50%”. Nessa hora o Sr. Javém saiu do hotel, acenou para a multidão, e disse: “Finalmente minha agente boa, pode sair daqui me ajudando a anunciar: A partir das 20:hs, tem Luiz Gonzaga no meu circo, que já está armado e estréia hoje em frente à Igreja do Rosário, desta maravilhosa cidade”.Era só o que eu queria ouvir.Fui direto me inscrever para acompanhar o palhaço nas ruas a fim de ganhar o ingresso. Comigo mais uns 50 garotos. Da nossa turma do bairro do Rosário, apenas João de Manelito não quis enfrentar esse desafio. Ele sempre foi encrenqueiro, preguiçoso, gabola, fedorento e mau caráter.Charuto terminou de se pintar, vestiu sua roupa de palhaço, botou uma meiota de cachaça no bolso, acoplou as pernas de pau de três metros de altura e promoveu dez minutos de ensaio com a gente, inclusive alertando que só ganharia o ingresso quem fizesse todo o percurso dançando, se balançando e interagindo com ele gritando bem alto. Vamos ao ensaio: Hoje tem espetáculo? A meninada respondia em coro: Tem sim sinhô... Vai ter palhaçada? Vai sim sinhô... Vai ter marmelada? Vai ter trapezista? Vai ter malabarista? E xenhenhen, xenhenhen, xenhenhen? E o que é que o véi tem? A meninada respondia: Carrapato no cedém... E Luiz Gonzaga vai cantar no circo? Vai sim sinhô... E ele vai aboiar e cantar Asa Branca? Vai sim sinhô... E as baianas vão dançar? E as mamães de vocês vão pro circo? E os papais de vocês vão pro circo? Na época não existia carro-de-som. A mídia era feita no grito. Mas para o palhaço Charuto também não precisava: A rua toda escutava. Nós saímos do circo ao meio dia para percorrer todas as ruas da cidade. Por volta das 16 horas Charuto já tinha,
tomado toda a meiota de cachaça e já cambaleava nas pernas de pau. Com medo de tropeçar ele chutava os meninos que se aproximavam. Dos 50 componentes do coro só restavam uns 30. O sol causticante, a fome, a sede e o cansaço aos poucos iam forçando a gente a desistir. Quase todos terminavam essa via crucis afônicos, roucos. Muitos adormeciam com o ingresso no bolso do calção. E o que era pior: não valia para o espetáculo do dia seguinte. Sete horas da noite lá estou eu no jequi da entrada do circo, todo estiloso, sapato bico fino, a calça comprida da farda do colégio, uma camisa de linho branco, a coisa mais linda, tenso, emocionado só em pensar que ia ver Luiz Gonzaga cantar. Também alimentando aquele sonho de chegar perto dele. Seria a voz dele, aquela gargalhada e aqueles gritos de aboios iguais aos que a gente escutava na Rádio Iracema de Iguatu e na Difusora de Cajazeiras? Pois bem meus amigos, quando eu estiquei o braço para entregar o ingresso ao bilheteiro, alguém puxou da minha mão aquele valioso pedaço de papel e saiu correndo. Era grande a movimentação na porta do circo. .Mas eu vi quando o
“Espírito de Porco” João de Manelito colocou o meu ingresso no bolso do calção. Foi o início de meia hora de briga. Todos os golpes de luta-livre que eu tinha aprendido com o Professor Isidro das Taboqueiras (Vertical suplex, dropkick, slam, superkick, splash etc.), nos treinamentos lá na areia do Rio Salgado, o infame conhecia também. O peste corria e tinha resistência. Nós rodeamos o circo umas 10 vezes. Ele correndo e eu correndo atrás sem conseguir alcançá-lo. Eu já estava pensando em desistir. Mas ao ver o caminhãozinho de Luiz Gonzaga chegando ergui a cabeça. O amaldiçoado tinha se adiantado uns cinco metros, entrou no jequi e já estava tirando o ingresso do bolso do calção para entregar ao bilheteiro.Nesse meio tempo eu consegui... Peguei ele pelo colarinho da camisa e pelo fundo do calção, puxei, derrubei num poço de lama...Perdí o equilíbrio e caí também dentro desse poço de lama. E nós ficamos igual a dois galos de briga. Ele fez carreira para me surpreender com uma tesoura voadora. Eu me defendi e contra-ataquei com um superkick nos ovos dele.Enquanto isso os seres humanos que adoram ver a desgraça dos outros logo se organizaram, fizeram uma roda bem grande e começaram a gritar: Menelito, Manelito, Manelito..Surgiu também minha torcida: JD, JD, JD... E nós dois engolindo corda, colocamos em prática todos os golpes de luta-livre que a gente sabia. Eu já tinha perdido os sapatos. A calça da farda já tinha virado bermuda. A camisa estava pela metade. E o pior: o ingresso de papel, que era o motivo da briga, já tinha se perdido dentro do poço de lama.Mas as torcidas organizadas estavam lá se manifestando. Todo mundo assistindo essa presepada. E a bilheteria do circo parada.A briga só terminou porque Javém, o dono do circo, percebendo que não ia ter condições de começar o espetáculo, interferiu, obrigou eu e ele fazer aquele gesto de mão de amigos, e botou a gente prá dentro.O carisma de Luiz Gonzaga era uma coisa sobrenatural. Ele conduzia o público às gargalhadas e às lágrimas o tempo todo. Essa proeza só emana dos astros que tem luz própria.Eu tive muita vontade de me aproximar dele. Cheguei até a ensaiar um papo para lhe dizer que a gente fazia aniversário no mesmo dia 13 de dezembro. Eu sempre tive muito orgulho disso. Mas descalço, todo rasgado e lambuzado de lama, com certeza ele iria tirar um sarro comigo. Pensando nisso eu procurei evitar.
Do livro " Histórias,Estórias, Crônicas e Causos".
João Dino.
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