ANÍSIO PAI DE SANTO
24 de Março - Dia de Combate a Tuberculose. O Dia Mundial da Tuberculose foi lançado, em 1982, pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e pela União Internacional Contra TB e Doenças Pulmonares (International Union Agaist TB and Lung Disease - IUATLD).A data foi uma homenagem aos 100 anos do anúncio do descobrimento do bacilo causador da tuberculose, ocorrida em 24 de março de 1882, por Dr. Robert Koch. Este foi um grande passo na luta pelo controle e eliminação da doença que, na época, vitimou grande parcela da população mundial e hoje persiste com 1/3 da população mundial infectada: 8 milhões de doentes e 3 milhões de mortes anuais. Mas morrer de tuberculose é coisa do passado. O elemento querendo se curar e a família participando, procurando ajudar, em seis meses o problema está resolvido.A história que eu vou contar agora aconteceu em 1963 (Eu tinha 8 anos de idade). Foi quando “Anísio Pai de Santo” contraiu essa doença lá na Rua do Rosário de Icó-CE. Gerou tanta expectativa, que a meninada já estava para perder a paciência: Pense num tuberculoso que demorou a morrer. Eu não sei precisar quanto tempo ele ficou moribundo. Mas me lembro que o prato de comida, o copo de leite e o copo d"água que eram utilizados para servi-lo diariamente, eram colocados por debaixo da porta. E um pedaço de tecido de caqui que foi fixado na porta ficava arrastando no chão para evitar que o ar de dentro do quarto contaminasse o ar de fora.Todo mundo tinha medo de se aproximar da porta do quarto onde Anísio estava confinado esperando a hora de morrer. E nossas mães ameaçavam a toda hora: quem visitar a casa de Anísio Tuberculoso entra na palmatória.No dia que Seu Walfrido Monteiro (Farmacêutico do lugar) diagnosticou e anunciou que Anísio estava "Ave Maria, Ave Maria, Ave Maria, três vezes" com essa mazela, a família o trancou num quarto, e ninguém mais pode ver o rosto dele.Todo dia, cedinho, a irmã que cuidava dele batia na porta e falava: Anísio, Anísio... Ele demorava alguns segundos, mais respondia.Seu Walfrido já tinha garantido que o caso dele era irreversível. Nós, os meninos da Rua do Rosário, torcendo para que ele morresse logo, porque no nosso Bairro, uma noite de velório era uma verdadeira festa. Era o que se podia denominar de: Uma noite de barriga cheia.Pamonha, pão-de-ló, aluar de casca de abacaxi, canjica, mungunzá, rapadura, pão de milho, tapioca, beiju, doce de mamão, doce de batata, milho assado na brasa, sequilhos (Isso minha Tia Nenem Laurentino fazia no capricho)... Eu estou escrevendo essa história com água na boca. ôh saudade da boa...E nada de Anísio Tuberculoso morrer. Nós inventamos de fazer os sete buracos para jogar aquele jogo de sete pecados justamente no oitão da casa dele. O objetivo era somente para saber da notícia em primeira mão, como vivem fazendo alguns repórteres "Me dê seu sangue para eu sobreviver” das televisões e rádios de hoje em dia.Lembro-me do dia em que "Du Bico de Maria de Agustinho” foi escalado para perguntar a trmã de Anísio se ele tinha morrido durante a noite.A irmã de Anísio pegou ar. Ficou com sete pedras na mão; fumando numa quenga. Saiu espraguejando a gente: “Vão embora magote de urubus... Vão desejar a morte do satanás magote de diabos... Deus queira que vocês peguem essa doença também..”Até aí tudo bem. Ninguém estava preocupado. Mas quando ela disse: “Anísio está é melhorando. Ontem, durante a noite, ele estava roncando e tossindo que dava prá gente ouvir lá da cozinha... Se Deus quiser meu irmão vai escapar”.Du Bico voltou desanimado. Essa notícia deixou todo mundo triste. Parece que eu estou vendo a cara dele dizendo: “Esse tuberculoso não vai morrer tão cedo. Vamos lá prá casa de João Laurentino (80 anos de idade, na época). Ontem, Dona Belinha (Parteira e Curandeira do Bairro) botou a vela na mão dele três vezes. Aqui nós estamos perdendo tempo. Vamos prá lá. Seu João Laurentino vai morrer primeiro do que esse aí”. Du Bico estava certo. Seu João Laurentino morreu na noite do sábado. Porque ele era boêmio, seresteiro, nesse dia até serenata teve. Está passando um filme aqui na minha cabeça. Parece que eu estou ouvindo Adalberto de Zuíla batendo violão, Fumo de Zé Pretinho moendo no pandeiro, e Toím, meu primo, soltando a voz no oitão da Igreja do Rosário: “Sertaneja eu vou-me embora, a saudade vem agora, a alegria vem depois”. Isso a meia noite. A viúva, já velhinha chorava pouco. Em compensação, uma afilhada que morava na casa do finado, chorava que soluçava. Chamava a atenção de todo mundo que estava no velório.Essa moça tinha um filho já rapazinho, na época. Batizado sem o nome do pai. E naquela noite, enquanto a pobrezinha se descabelava chorando, as fofoqueiras da Rua do Rosário começaram a olhar para o retrato de Seu João quando ele era jovem; um retrato que ele tinha tirado em Fortaleza quando foi servir à Marinha do Brasil.Minha Tia Isabel sempre foi indiscreta: Tirou o retrato da parede e chamou as outras amigas para examinar. Só se ouvia os cochichados: “o pau da venta é igual”. Outra dizia: “minha irmã, a sobrancelha e os olhos tiram a mãe da culpa..” Pouco tempo depois estava completo o DNA: Tia Nenem chegou e oficializou: “Eu examinei as unhas dos pés. Esse rapaz é filho do finado”. Pois vocês me acreditem, elas só sossegaram quando contaram esse segredo a viúva legítima. O resto vocês podem imaginar.E enquanto tudo isso acontecia, a meninada aproveitando e enchendo a barriga de “mangaio”. Os buchos em tempo de estourar. O velório virava festa. Quase ninguém se lembrava que tinha um defunto na sala da casa. Pense numa coisa que a gente tem saudade. Os amigos que eu considero verdadeiros são aqueles do Bairro do Rosário. Hoje, quando alguém me magoa por qualquer motivo banal, eu engulo calado. Eu não posso reagir. Cadê os meus amigos? Cadê Bonfim de Bia Laurentino, Fransquim de Berenice, Zé Pela Pau, Du Bico, Cíço de Nêga, Cucua, Luiz de Maroca, Finfa de Macial, Natim de Geraldo Félix, Bocoió de Assis Félix, Ivan Matraca, Adelmo de Ana Lúcia, Manoel Guabiraba, Zé Pereira, Dedé de Bia, Eimar de Jurema, Rolim, Cabo Neto, Esquerdinha...? Estão todos espalhados pelo meio do mundo. Hoje qualquer pé-rapado faz de mim gato e sapato, porque os meus verdadeiros amigos estão muito longe. E alguns até já viraram estrelas.
Do livro: João Dino, Histórias, Estórias, Crônicas e "causos".
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