segunda-feira, 30 de julho de 2012

O VELÓRIO DE TOIM


Se você nunca participou de uma noite de velório, na zona rural ou numa pequena cidade do Sertão Nordestino, nas décadas de 60 e 70, pode ter certeza que você não sabe o que é uma festa. Meu primo Toím de Chico Laurentino, tinha 30 anos quando foi chamado pelo grande homem, para o andar de cima, e nos deixou, fora do tempo combinado.Os mais velhos da cidade diziam por uma boca só: "Ele durou foi muito..". Porque Toím, aos dez anos de idade, logo que deixou os tradicionais vícios de comer terra e chupar dedos, começou a beber cachaça e fumar. Ele não media distância. Bebia até ficar botando boneco. Casou-se muito cedo também. Quando atingiu a maior idade já era pai de três filhos. E Nenzinha de Chico Bernardino, esposa dele, teve oito filhos. Ela era disposta.
Trabalhava de dia e de noite, lavando e passando roupas prá ganhar dinheiro.Toím era metido a boêmio, poeta, cantor. Imitava Waldick Soriano. Cantando a carta, ele repetia até aqueles falsetes característicos da voz de Waldick. Em 1967, a cirrose se apossou do corpo de Toím. Era aquele barrigão duro. Andava com dificuldade. Sempre em câmera lenta. Os lábios descascando. Os dentes desbotados. Os pés sempre suados, com aquelas unhas brancas. Quando alguém se aproximava dele para lhe dar um conselho, ele se posicionava contrário e tinha uma resposta para tudo, na ponta da língua. Certa vez Manoel de Zé Guabiraba lhe disse: “Toím, acabe com essas cachaças”. Ele respondeu: “É isso que eu vivo tentando fazer. Mas quando eu bebo uma garrafa o alambique faz dez". Manoel insistiu: “Devagarinho a cachaça vai terminar lhe matando”. Toím concluiu: “Eu não estou apressado prá morrer”. Toím era muito simpático. Tinha uma prosa boa. Muitos amigos. Era querido demais por todos nós da família. Nunca fez mal a ninguém. Se tirasse dele o vício da cachaça, seria um homem perfeito, era o que todo mundo dizia. Ainda hoje a falta dele é sentida por todos que desfrutaram da sua amizade.O coração de Toím parou de bater numa tarde de sábado. Depois que Belinha de João Laurentino examinou o pulso dele e não detectou nenhum sinal de vida (Belinha era uma espécie de enfermeira/curandeira. Ninguém duvidava das coisas que ela dizia.), deu aquela notícia que já era esperada por todos: “Toím foi para o céu”. O carpinteiro Zé Guabiraba veio medir o corpo para confeccionar o caixão de madeira. A difusora do som de Zequinha Aleijado anunciou a nota de falecimento e o convite enterro. E imediatamente Nenen de Bia Laurentino foi convocada para coletar os mantimentos para alimentação dos parentes e amigos de Toím. Hoje em dia se diz: organizar o Buffet.Sete horas da noite, quando Zé Guabiraba chegou com o caixão, a casa já estava cheia. Os próprios amigos tiraram o corpo de Toím da rede, vestiram a melhor roupa e calçaram o único sapato que ele tinha. Posicionaram o caixão conforme a tradição da época, ou seja: sobre duas cadeiras de madeira colocadas no centro da sala, com a parte dos pés para a porta principal. Em baixo do caixão, dentro de uma tigela de barro, alfazema e alecrim queimando nas brasas, para exalar possível mal cheiro. E em seguida, também seguindo a tradição, o último lenço de tecido que o finado usou foi colocado sobre o rosto dele.Parece que eu estou vendo: A mãe de Toím de um lado e a esposa dele do outro lado do caixão, próximas a parte da cabeça. O choro delas era a parte emocionante da cerimônia. Elas choravam o tempo todo. E quando chegava alguém que ainda não havia visitado o velório, aí o volume do choro aumentava. Enquanto isso, minha Tia Nenem, com mais meia dúzia de moças, circulavam da cozinha para o terreiro da casa, preparando e servindo as pessoas. Pão de milho, café, batata doce, milho cozinhado, milho assado, pamonha, sequilho, pão-de-ló, tapioca, beiju, abacaxi, aluá de casca de abacaxi adoçado com rapadura, peixe assado com farinha, conhaque, cachaça de Aracati etc. Durante toda a noite o rojão era esse. Era o que se chamava lá na rua do Rosário: Uma noite de barriga cheia. Velório tinha essa denominação, porque mesmo se o defunto fosse pobre os amigos e os parentes traziam os mantimentos. Lá no terreiro já estava tudo organizado: mesa para os jogadores de baralho, tábuas de gamão, jogo de caipira. Os meninos que tinham a minha idade (12 anos) jogando “sete buracos” com a luz de um candeeiro improvisado numa lata de querosene com um pavio de algodão. Pense numa festa. Gargalhadas a toda hora. Quando Manel de Ruberto contava uma piada tinha moça que se mijava de tanto rir. Do outro lado . estava D. Anete, minha mãe, atualizando as fofocas da cidade com as amigas. Ela sempre foi chegada a esse tipo de prosa. Prá falar a verdade, eu achava bonito mãe falando da vida alheia, porque quando surgia uma briga ela dizia: “Eu não falei nada. Minha boca é um túmulo”.E está lá a viúva chorando e repetindo um refrão que a gente ouvia em todos os velórios: “Oh meu Deus...Porque o Senhor levou Toím... Um homem tão bom, tão querido, tão trabalhador, tão cumpridor dos negócios... tão dedicado à família... Toím, como é que eu vou criar esses oito meninos sem tu? E quando esse que está aqui no meu bucho nascer... Oh Toím como tu vai fazer falta...” Sempre que a viúva estava dizendo isso, minha Tia Nenem, se aproximava do caixão, tirava o lenço da cara do defunto, e olhava bem firme para o rosto dele. Depois recolocava o lenço, fazia um gesto nos olhos e na boca que todo mundo ficava achando graça. Ela saía bem séria. Mas quem assistia aquela presepada não se segurava. A risada era inevitável. Uma vez. Duas. Três. Na quarta vez, quando a viúva estava repetindo esse refrão, meu pai se aproximou de Tia Nenem e foi querer botar moral: “Ei Nenem, que palhaçada é essa? Porque quando a viúva está falando você fica descobrindo o rosto de Toím para o povo ficar achando graça?” Ela, com a cara mais cínica do mundo, se justificou: “É porque sempre que ela está dizendo: um homem tão trabalhador, tão cumpridor dos seus negócios, tão dedicado à família, eu penso que ela está falando de outro defunto, e não desse que está deitado aí..”. Nessa hora a gargalhada do povo foi generalizada. Eu sou saudosista demais. As imagens desse velório do meu primo Toím eu nunca esquecí. E quando eu vejo Lula nas suas visitas ao exterior falando do Brasil que ele redescobriu, reconstruiu e fez essa maravilha de paraíso onde o povo vive comendo três refeições por dia e tem tudo do bom e do melhor, eu fico sempre pensando o que minha Tia Nenem pensava quando olhava o rosto de Toím dentro do caixão: “Ele deve está falando da Nova Zelândia ou do Japão... Não pode ser do Brasil”. Por outro lado, quando os Secretários da Prefeitura de Juazeiro do Norte estão dando entrevistas nas Rádios, nos Jornais, nas TV’s etc., eu volto a pensar o que minha Tia Nenem pensava quando tirava o lenço da cara de Toím: “Eles devem estar falando de Joinville (SC) ou de Curitiba (PR)... Não pode ser de Juazeiro Será que só eu penso assim?” Por isso, lá vai esta quadrinha: Justiça eleitoral, são dois pesos, duas medidas. No processo criminal, diferenças são sentidas. Abusado, bruto, arrogante, prepotente, estúpido, ignorante, inconseqüente. Para o rico são virtudes, até engraçado, todo mundo aceita; Já ao pobre portador desses adjetivos, invertem-se predicados e substantivos. Os “Coxinhas” dizem: além de pobre é idiota e besta. .

Por João Dino, do livro: João Dino, Histórias, Estórias, Crônicas e "causos"



Nenhum comentário:

Postar um comentário