quarta-feira, 11 de julho de 2012

SOCORRO AO APERTADO


Atender bem, ser gentil e tratar as pessoas com carinho, nunca é demais. A humanidade admira criaturas educadas e prestativas. Em 1969, aos 14 anos de idade, eu era o soldador da Oficina São José – Icó (CE), de propriedade do meu pai. O dinheiro lá era muito curto. Para comprar o sapato e a roupa nova no final do ano, a fim de mostrar à namorada e aos amigos na festa de Senhor do Bonfim, eu me virava fazendo horas extras nas oficinas de Rafael do Sobrado, Adalberto Cavalcante, Zé de Cidrinha etc. Mestre Chico Perempa, era o ferreiro da Oficina de Adalberto Cavalcante. Pegou uma encomenda de 100 chibancas (Ferramenta utilizada para arrancar toco de árvores e escavar alicerce de construção), para entregar num curto espaço de tempo, ao grupo de empreiteiros que estavam conduzindo a frente de emergência no Município de Icó. Diante da urgência da encomenda, ele empreitou comigo o serviço de soldar as chibancas. Para dar conta dessa tarefa eu chegava na Oficina de Adalberto às cinco horas da manhã, ligava a potente máquina de solda bambozzi, e só desligava quando concluía dez chibancas. Daí, descansava um pouco. O tempo de descanso era também para a máquina desaquecer, devido o tipo de eletrodos OK-48, que forçava muito.Lá estou eu concentrado no trabalho, soldando, cantando, assobiando, batendo o cascalho, limpando, colocando as chibancas concluídas sobre o batente da janela e dando continuidade a segunda remessa. Nós tínhamos bastante pressa. O material era aço, não podia jogar água para esfriar. O que é fato é que quando o Mestre Chico Perempa tirava as três peças da forja, eu já começava a emendar com solda. E modéstia à parte, eu era, e ainda sou, um bom soldador. Todo os colegas de trabalho me respeitavam porque eu queimava os eletrodos em todas as posições (Horizontal, vertical e sobre a cabeça).7:00 horas. Depois de duas horas, estou eu lá nos fundos da Oficina, onde o lugar era mais apropriado para a alta temperatura, e dava prá ver um cidadão de grande porte, meia idade, bem vestido com roupa de mescla, calçado numa botina vulcabrás, relógio Mido no braço, chapéu Panamá sobre a cabeça etc. Não parecia ser um freguês comum. E esse cidadão, aparentemente agoniado, acenava para falar com alguém da Oficina.Por três vezes eu gritei lá dos fundos da Oficina para os meus colegas que ainda não tinham começado a trabalhar: Ei decentes... Atendam esse cidadão aí... Procurem saber o que ele está querendo... Meus amigos, era segunda-feira. A ressaca estava braba. Pedro de João Marcos, Raimundo de Maria Nazaré, Adelmo de Ana Lúcia e meu velho amigo Bebedor da Estrema do Lobato (Sítio de Icó), todos esperando cair do céu algum dinheiro para tomar a primeira aguardente. Eles amanheciam o dia tremendo. Como dizia Manoel de Zé Guabiraba, pareciam um Jeep Toyota em ponto morto. Tinham que tomar uma lapada depinga para calibrar os nervos e entrar em órbita.Lá estavam eles. Todos sentados no meio fio da Rua. E enquanto isso, o cidadão agoniado na porta da oficina, clamava pela presença de um cristão que o atendesse.Depois que eu fiz o 3º apelo: Ei garotos, atendam aí esse cidadão... Eu vi que ninguém estava dando importância. Desliguei a máquina, guardei a máscara e fui até a porta.Bom dia... O Senhor está esperando pelo Patrão Adalberto? Para me responder o cidadão colocou a mão alisando a barriga e falou sussurrando: "Não amigo. Eu estou aqui porque tomei um remédio para gastrite, e preciso ir ao banheiro, urgente".Meus amigos, o homem estava suado, nervoso, agoniado. Eu me comovi com o drama dele, e falei: me acompanhe. Levei o cidadão até o banheiro. Em seguida fui lá na bodega de Nel de Petrina, peguei um jornal velho e empurrei por baixo da porta do banheiro para o cidadão fazer a limpeza. Religuei a máquina de solda e reiniciei a minha empreita.O cidadão demorou cerca de 20 minutos. Quando saiu do banheiro ficou querendo falar comigo.E lá estou eu com a máscara no rosto, concentrado no trabalho, assobiando. Na verdade eu já tinha esquecido que ele estava no banheiro, quando, de repente, o Patrão Adalberto, que havia acabado de chegar na oficina, falou: "João "Dino, tem um cidadão lá fora querendo falar . com você" Desliguei a máquina de novo, e me dirigi ao .cidadão: diga amigo... Ele respondeu: "Eu estou querendo lhe gratificar.quero lhe dar um agrado pelo favor que você me fez... Que é isso homem. Deixe isso para lá. Disponha. .Estamos aqui às suas ordens. Mas o homem insistiu: Não, eu quero que você aceite... É só uma lembrancinha... Eu trabalhava usando uma bata sobre a camisa. Ele se aproximou de mim e colocou algumas notas no bolso superior da bata.Tudo bem. Foi insistência dele. Eu agradeci. E voltei para concluir a minha empreita de soldar as 100 chibancas, objeto da encomenda do Mestre Chico Perempa.Nessa hora, o patrão Adalberto se aproximou e me perguntou: João Dino, você conhece esse cidadão? Respondí: não. Adalberto continuou: "o nome dele é Zezão do Rio Grande, boiadeiro de São Miguel (RN)... João esse cabra é rico. Olha ali o carro dele". Adalberto apontou para um caminhão zero km, equipado com aquelas grades de transportar animais. Insistiu na pergunta: "Você não o conhece, mas o que foi que você fez prá ele?" Falei: Eu não fiz nada não... Ele estava ali na porta da oficina em tempo de cagar nas calças e eu o levei até o banheiro. Adalberto disse: "Mas ele colocou alguma coisa no seu bolso, que eu vi. Deve ter sido dinheiro".Nessa hora os pinguços quepermaneceram sentados no meio fio da rua enquanto ocidadão estava aflito, clamando por um pouco de . atenção, foram se chegando.Eu metí a mão no bolso para conferir e lá estavam 10 notinhas de R$ 10,00, bem novinhas. Na época, o mesmo valor da minha empreita para soldar as 100 chibancas do Mestre Chico Perempa.Os meus colegas ficaram indignados porque perderam a chance de ganhar esse dinheiro do boiadeiro. E tome assédio para pedir dinheiro emprestado. Imaginem vocês, numa segunda-feira de manhã, todo mundo liso e eu estribado com R$ 100,00. Resolví promover uma festa para eles: Comprei um quilo de tripa de porco, um quilo de farinha, uma meota de cachaça caranguejo e dei de presente.Raimundo de Maria Nazaré quando ingeriu a primeira lapada de cana ficou tão feliz que se manifestou: "Nunca mais eu deixo um freguês esperando. E se esse boiadeiro voltar por aqui, quem vai levar ele para o banheiro e até limpar a bunda dele, sou eu".NOTA DE SAUDADE: Da equipe que trabalhou comigo na Oficina de Adalberto Cavalcante, apenas eu e Adelmo de Ana Lúcia (Hoje com sérios problemas de saúde, lá em Icó-CE) estamos vivos. Os outros, sobretudo devido ao alcoolismo, partiram para o andar de cima antes do combinado. A bebida alcoólica é cruel.

Do livro: João Dino, Histórias, Crônicas e "causos".


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