DESTINO TRAÇADO
Claude Putman compôs a música
“Green, Green Grass of Home”, e o grande roqueiro americano “Elvis Presley”, no
início dos anos 60, fez sucesso no mundo. Aqui no Brasil, numa versão feita por
Geraldo Figueiredo, intitulada “Os Verdes Campos da Minha Terra”, Agnaldo
Timóteo gravou, em 1967. O Brasil descobriu o maior cantor popular da época. Foi
cantando essa música que Agnaldo largou a profissão de torneiro mecânico e se
arrumou na vida. E eu, ainda adolescente, tocando o meu violão e cantando essa
canção, sobretudo nas festinhas de despedidas dos nossos conterrâneos que se
aventuravam rumo ao sul do país, também fiz muito sucesso. Quando alguém perdia
a paciência da monotonia e da falta de oportunidades de empregos da nossa
querida Icó-CE, que decidia ir embora para São Paulo, eu entrava em cena. A hora
da triste partida tornava-se mais amena com João Dino cantando e tocando violão.
Fiz isso muitas vezes. E até comigo mesmo aconteceu. Depois da festa do Senhor
do Bonfim, em janeiro de 1976, eu fui embora para Novo Hamburgo (RS), fazendo
parte de uma comitiva de 12 conterrâneos. Fomos todos em busca de trabalho.Perdi
a conta de quantas vezes eu cantei essa música na hora em que o ônibus da
Itapemirim recolhia os passageiros, que normalmente conduziam uma maletinha
confeccionada de madeira, revestida de papel colorido colado com goma, e duas
latinhas de flandres, bem tampada, uma contendo
galinha torrada com farofa e outra com carne de porco e cuscuz, na quantidade
suficiente para chegar ao destino. A agência da Itapemirim, onde Rosinha vendia
as passagens e embarcava os sonhadores, era também um bar. E era lá que a gente
se concentrava. Os amigos e familiares se aglomeravam e faziam o coro cantando
comigo: “Se algum dia, à minha terra eu voltar, quero encontrar as mesmas coisas
que deixei... Quando o trem parar na estação, eu sentirei no coração, a alegria
de chegar... Quero encontrar a sorrir para mim, o meu amor a me esperar...”
Enquanto o emigrante subia os degraus da porta do ônibus o chororô era geral.
Familiares, amigos e, principalmente a namorada, que a partir daquele momento já
vislumbrava um caritó, um encalhamento para a vida inteira.Eu vou contar prá
vocês a maior de todas as despedidas que eu cantei e explicar o porque. Bonfim
de João Rosa foi um dos meus maiores amigos de adolescência. Amigo de caçadas e
pescarias. Amigo confidente. É isso, nós não tínhamos segredos um para o outro.
E digo mais: Bonfim foi o maior incentivador da minha carreira de cantor. A
primeira fita cassete que eu gravei ele fez questão de tirar cópias para vender
ao povo. E fazia uma propaganda incrível, gratuitamente. Nossa amizade só não
era maior porque ele gostava de jogar sinuca, traçava um baralho, bebia, fumava
etc., e eu nunca fui chegado a essas coisas. Essa nossa amizade um dia sofreu um
grande abalo... Ele me contou um segredo que eu não pude guardar. Sem ninguém lá
de casa saber, às escondidas, ele estava namorando a minha irmã mais velha. Meus
amigos, quando eu disse isso a D. Anete (Minha mãe), o cão saiu da garrafa. A
“nêga” levou logo uma surra grande... Meu pai decretou
algumas medidas preventivas. E todos nós (10 irmãos) fomos obrigados
a fiscalizar. Parecia a estória de Romeu e Julieta... O Amor proibido. Mas a nêga
era tão apaixonada por ele que driblava toda a fiscalização. Na realidade ele
não tinha culpa. Ela foi quem se embelezou por ele, e não enxergava nenhum
defeito.Um dia, numa festinha de aniversário lá em casa, ele se embebedou que
amoleceu. Vomitou no colo dela. Mãe aproveitou e fez um verdadeiro sermão: “Olha
aí minha filha... Esse homem é muito sem futuro... Antes de casar ele faz uma
presepada dessas, imagine depois”. Ela respondeu: “Ele não está bêbado não...
Está apenas com soluço e golfou...” Num desses porres um dia ele caiu na
besteira de me dizer: “Se eu tivesse o dinheiro da passagem eu ia embora prá São
Paulo”. Nós pegamos no dente. Toda nossa família se reuniu para juntar o
dinheiro dessa passagem. Mãe vendeu dois bacurins, pai vendeu o revólver, eu
vendi uma espingarda de cartuchos e uma bicicleta. No dia seguinte fomos lá na
Agência de Passagem de Rosinha comprar a cadeira número um do ônibus da
Itapemirim, que saía de Iguatu no domingo às 15:00 horas.Todos nós estávamos
acreditando que essa viagem seria o fim desse namoro. Afinal eles eram muito
jovens. E a distância se encarregaria de afastá-los. E nós organizamos a
tradicional festa de despedida. Mãe encheu a latinha de galinha
torrada com farofa. Tia Nenem Laurentino torrou uns três kg de carne de porco com cuscuz.
Tudo pronto para Bonfim viajar.E estou eu lá no bar de Rosinha tocando violão e
cantando. Mas de cem pessoas nessa tarde domingo se faziam presentes para essa
despedida de Bonfim, que eu queria muito como amigo, mas não como cunhado. E
ele, tome cerveja, tome montilla, tome vodka... Quando o ônibus chegou foi
preciso levá-lo nos braços porque ele já nem conseguia ficar de pé. A mãe dele,
abraçada com minha irmã, choravam num desespero que chamava a atenção de todo
mundo. O momento ficou tão comovente que até o motorista do ônibus, ouvindo a
gente cantar a música “Verdes campos da minha terra” se emocionou. Ele buzinava
anunciando a partida, mas com os olhos cheios d’água, dizia: “Tá bom gente... Eu
gostaria de poder demorar mais um pouco... Infelizmente não posso... Tenho
horário a cumprir..”. Finalmente o ônibus seguiu viagem rumo a São Paulo,
conduzindo Bonfim na cadeira nº 1. A primeira parada era na revenda de passagens
da cidade de Barro, distante 120 km. Os passageiros tinham 30 minutos para
jantar. Todos desceram. Só Bonfim permaneceu dormindo dentro do ônibus. De
repente ele acordou, e meio atordoado, foi ao banheiro. Na Agência de Barro,
nesse horário, todos os ônibus da Itapemirim estacionavam para os passageiros jantarem. Os que estavam indo e os que
estavam voltando de São Paulo. Aconteceu exatamente o que você leitor está
pensando... Quando voltou do banheiro, atordoado, o ônibus no qual ele ia prá
São Paulo já tinha saído, Bonfim entrou no que estava voltando para o Icó.
Sentou-se na 1ª cadeira, cujo ocupante tinha descido em Barro. O motorista não
percebeu nenhuma mudança.Vou resumir a história... Todo nosso sacrifício foi em
vão... A mala e as latas de galinha e carne de porco foram prá São Paulo. Mas
Bonfim, apareceu lá em casa, com a cara mais lisa do mundo, na hora do Jornal
Nacional, ainda bêbado do mesmo jeito que embarcou no Itapemirim. Você pode
imaginar a recepção por parte de nossa família.Poucos meses depois nós fizemos
uma grande festa de casamento. Minha irmã viveu com ele por mais de 20 anos. Só
a morte conseguiu separá-los. Três netinhos ele deixou prá D. Anete. E esses
meus sobrinhos são queridos demais.Eu, que o conheci muito bem, tenho certeza de
que lá do andar de cima, ele deve estar mangando de mim porque eu terminei de
escrever essa história chorando, e também porque no dia 1º de maio de 1996, ele
partiu consciente de que não era só a minha irmã que morria de amores por ele: O
carisma, a simplicidade, a bondade, a fala mansa e a simpatia dele contagiou
toda nossa família. Ainda hoje nós sentimos muito a sua falta. ..
Do livro: João Dino, Histórias,Estórias, Crônicas e "causos".
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