sábado, 15 de setembro de 2012

DESTINO TRAÇADO



Claude Putman compôs a música “Green, Green Grass of Home”, e o grande roqueiro americano “Elvis Presley”, no início dos anos 60, fez sucesso no mundo. Aqui no Brasil, numa versão feita por Geraldo Figueiredo, intitulada “Os Verdes Campos da Minha Terra”, Agnaldo Timóteo gravou, em 1967. O Brasil descobriu o maior cantor popular da época. Foi cantando essa música que Agnaldo largou a profissão de torneiro mecânico e se arrumou na vida. E eu, ainda adolescente, tocando o meu violão e cantando essa canção, sobretudo nas festinhas de despedidas dos nossos conterrâneos que se aventuravam rumo ao sul do país, também fiz muito sucesso. Quando alguém perdia a paciência da monotonia e da falta de oportunidades de empregos da nossa querida Icó-CE, que decidia ir embora para São Paulo, eu entrava em cena. A hora da triste partida tornava-se mais amena com João Dino cantando e tocando violão. Fiz isso muitas vezes. E até comigo mesmo aconteceu. Depois da festa do Senhor do Bonfim, em janeiro de 1976, eu fui embora para Novo Hamburgo (RS), fazendo parte de uma comitiva de 12 conterrâneos. Fomos todos em busca de trabalho.Perdi a conta de quantas vezes eu cantei essa música na hora em que o ônibus da Itapemirim recolhia os passageiros, que normalmente conduziam uma maletinha confeccionada de madeira, revestida de papel colorido colado com goma, e duas latinhas de flandres, bem tampada, uma contendo galinha torrada com farofa e outra com carne de porco e cuscuz, na quantidade suficiente para chegar ao destino. A agência da Itapemirim, onde Rosinha vendia as passagens e embarcava os sonhadores, era também um bar. E era lá que a gente se concentrava. Os amigos e familiares se aglomeravam e faziam o coro cantando comigo: “Se algum dia, à minha terra eu voltar, quero encontrar as mesmas coisas que deixei... Quando o trem parar na estação, eu sentirei no coração, a alegria de chegar... Quero encontrar a sorrir para mim, o meu amor a me esperar...” Enquanto o emigrante subia os degraus da porta do ônibus o chororô era geral. Familiares, amigos e, principalmente a namorada, que a partir daquele momento já vislumbrava um caritó, um encalhamento para a vida inteira.Eu vou contar prá vocês a maior de todas as despedidas que eu cantei e explicar o porque. Bonfim de João Rosa foi um dos meus maiores amigos de adolescência. Amigo de caçadas e pescarias. Amigo confidente. É isso, nós não tínhamos segredos um para o outro. E digo mais: Bonfim foi o maior incentivador da minha carreira de cantor. A primeira fita cassete que eu gravei ele fez questão de tirar cópias para vender ao povo. E fazia uma propaganda incrível, gratuitamente. Nossa amizade só não era maior porque ele gostava de jogar sinuca, traçava um baralho, bebia, fumava etc., e eu nunca fui chegado a essas coisas. Essa nossa amizade um dia sofreu um grande abalo... Ele me contou um segredo que eu não pude guardar. Sem ninguém lá de casa saber, às escondidas, ele estava namorando a minha irmã mais velha. Meus amigos, quando eu disse isso a D. Anete (Minha mãe), o cão saiu da garrafa. A “nêga” levou logo uma surra  grande... Meu pai decretou algumas medidas preventivas. E todos nós (10 irmãos) fomos obrigados a fiscalizar. Parecia a estória de Romeu e Julieta... O Amor proibido. Mas a nêga era tão apaixonada por ele que driblava toda a fiscalização. Na realidade ele não tinha culpa. Ela foi quem se embelezou por ele, e não enxergava nenhum defeito.Um dia, numa festinha de aniversário lá em casa, ele se embebedou que amoleceu. Vomitou no colo dela. Mãe aproveitou e fez um verdadeiro sermão: “Olha aí minha filha... Esse homem é muito sem futuro... Antes de casar ele faz uma presepada dessas, imagine depois”. Ela respondeu: “Ele não está bêbado não... Está apenas com soluço e golfou...” Num desses porres um dia ele caiu na besteira de me dizer: “Se eu tivesse o dinheiro da passagem eu ia embora prá São Paulo”. Nós pegamos no dente. Toda nossa família se reuniu para juntar o dinheiro dessa passagem. Mãe vendeu dois bacurins, pai vendeu o revólver, eu vendi uma espingarda de cartuchos e uma bicicleta. No dia seguinte fomos lá na Agência de Passagem de Rosinha comprar a cadeira número um do ônibus da Itapemirim, que saía de Iguatu no domingo às 15:00 horas.Todos nós estávamos acreditando que essa viagem seria o fim desse namoro. Afinal eles eram muito jovens. E a distância se encarregaria de afastá-los. E nós organizamos a tradicional festa de despedida. Mãe encheu a latinha de galinha torrada com farofa. Tia Nenem Laurentino torrou  uns três kg de carne de porco com cuscuz. Tudo pronto para Bonfim viajar.E estou eu lá no bar de Rosinha tocando violão e cantando. Mas de cem pessoas nessa tarde domingo se faziam presentes para essa despedida de Bonfim, que eu queria muito como amigo, mas não como cunhado. E ele, tome cerveja, tome montilla, tome vodka... Quando o ônibus chegou foi preciso levá-lo nos braços porque ele já nem conseguia ficar de pé. A mãe dele, abraçada com minha irmã, choravam num desespero que chamava a atenção de todo mundo. O momento ficou tão comovente que até o motorista do ônibus, ouvindo a gente cantar a música “Verdes campos da minha terra” se emocionou. Ele buzinava anunciando a partida, mas com os olhos cheios d’água, dizia: “Tá bom gente... Eu gostaria de poder demorar mais um pouco... Infelizmente não posso... Tenho horário a cumprir..”. Finalmente o ônibus seguiu viagem rumo a São Paulo, conduzindo Bonfim na cadeira nº 1. A primeira parada era na revenda de passagens da cidade de Barro, distante 120 km. Os passageiros tinham 30 minutos para jantar. Todos desceram. Só Bonfim permaneceu dormindo dentro do ônibus. De repente ele acordou, e meio atordoado, foi ao banheiro. Na Agência de Barro, nesse horário, todos os ônibus da Itapemirim estacionavam para os passageiros jantarem. Os que estavam indo e os que estavam voltando de São Paulo. Aconteceu exatamente o que você leitor está pensando... Quando voltou do banheiro, atordoado, o ônibus no qual ele ia prá São Paulo já tinha saído, Bonfim entrou no que estava voltando para o Icó. Sentou-se na 1ª cadeira, cujo ocupante tinha descido em Barro. O motorista não percebeu nenhuma mudança.Vou resumir a história... Todo nosso sacrifício foi em vão... A mala e as latas de galinha e carne de porco foram prá São Paulo. Mas Bonfim, apareceu lá em casa, com a cara mais lisa do mundo, na hora do Jornal Nacional, ainda bêbado do mesmo jeito que embarcou no Itapemirim. Você pode imaginar a recepção por parte de nossa família.Poucos meses depois nós fizemos uma grande festa de casamento. Minha irmã viveu com ele por mais de 20 anos. Só a morte conseguiu separá-los. Três netinhos ele deixou prá D. Anete. E esses meus sobrinhos são queridos demais.Eu, que o conheci muito bem, tenho certeza de que lá do andar de cima, ele deve estar mangando de mim porque eu terminei de escrever essa história chorando, e também porque no dia 1º de maio de 1996, ele partiu consciente de que não era só a minha irmã que morria de amores por ele: O carisma, a simplicidade, a bondade, a fala mansa e a simpatia dele contagiou toda nossa família. Ainda hoje nós sentimos muito a sua falta. ..


 Do livro: João Dino, Histórias,Estórias, Crônicas e "causos".

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