CACHAÇA NÃO É ÀGUA NÃO
Calculo que 90% dos artistas
não são preparados para encarar o sucesso sem que ele mexa com suas cabeças. Os
grandes cantores, escritores, pintores, atores, jogadores de futebol, etc., no
auge de suas carreiras, muitas vezes seduzidos por falsos amigos, são tentados e
enfrentam problemas com drogas, cigarros, álcool, com os vícios em
geral. Exemplos conhecidíssimos do povo brasileiro: O grande Nelson Gonçalves
que, no ápice de sua carreira, por influência de empresários inescrupulosos, se
entregou às drogas, e jogou pelo ralo uma belíssima história. Em seus
depoimentos ele chegou a dizer que algumas vezes cantou em troca de uma porção
da erva maldita.Garrincha, outro exemplo bastante conhecido por todos nós. Um
astro que se destruiu pelos vícios. São inúmeros casos: Noel Rosa, Cazuza,
Renato Russo, Paulo Sérgio, Antonio Marcos, Elis Regina... Nomes reconhecidos no
Brasil e no exterior.Numa menor dimensão, aqui no Cariri do Ceará, uma Orquestra
de Baile que, na euforia das décadas de 60 e 70, agendava e cumpria uma média de
15 shows por mês, enfrentou alguns problemas dessa natureza com alguns de seus
componentes mais famosos.Entretanto, devido as dificuldades para aquisição
dessas drogas caríssimas, eles se viciaram e ficaram dependentes da cachaça
regional, extraída basicamente da nossa cana-de-açúcar nordestina.Os dependentes
dessa aguardente, embora jovens, passaram a ter visões do além. Alucinações. Um
caso verdadeiro, testemunhado por muitos colegas, aconteceu na sede social da
ARCA-Associação Recreativa e Cultura de Araripina-PE, no início dos anos 70. Ao
chegarem na Cidade os componentes da orquestra foram informados de que a
construção daquela recém inaugurada casa de espetáculos fora realizada sobre o
terreno do antigo cemitério público, demolido, desativado e transferido para
outro bairro.Não vou declinar os nomes dos personagens dessa história porque são
cidadãos hoje sexagenários, septuagenários que merecem as nossas considerações e
o nosso respeito. São excelentes pais de família, avós queridos por muitos netos
etc. Antigamente as festas começavam às 20:00 horas. O melhor da sociedade do
Sertão do Araripe se fazia presente nesse grande evento. E os músicos com suas
garrafinhas de cachaça bem ali do lado, de vez em quando, entre uma música e outra, uma
bicadinha de cachaça. O que é fato é que meia noite em ponto o tecladista e o
baterista mudaram o tom, o ritmo e a melodia da música que a orquestra estava
executando naquele momento.Todos tiveram que parar. E a explicação deles não foi
muito convincente, Vou repetir aqui as palavras que eu ouvi da boca deles. A
mais pura verdade. Um cidadão do qual eles dois não conseguiam ver o rosto
surgiu em meio a iluminação da palco, usando um vestuário preto de maestro e com
uma batuta na mão, começou a fazer a regência do bolero de Ravel. A orquestra
estava tocando os sucessos internacionais dos “Beatles”. E a miragem desse
maestro impostor, sendo vista apenas pelo tecladista e pelo baterista, ordenava
com bastante ênfase que eles dois tocassem o bolero de Ravel. Muitas discussões
no palco. O dono da orquestra teve que intervir para contornar a situação.
Visivelmente embriagados os dois suplicavam: Sr. Fulano, retire esse maestro de
nossa frente... Olhe ele aí acenando a batuta... Ele está nos atrapalhando...
Nós não vamos poder tocar com esse sujeito regendo . o bolero de Ravel e
gritando no pé do ouvido da gente... O público não entendia o que estava
acontecendo com aquela famosa orquestra, até que alguém sugeriu: Vamos rezar um
“Pai Nosso” e uma “Ave Maria” (Esse ritual ainda hoje é usado pela Polícia Civil
de Juazeiro do Norte. Quando o caso é muito complicado o Delegado reúne o
pessoal envolvido na operação, para rezar de mãos dadas.), que esse fantasma
desaparece.Também na minha querida Icó-CE, Ronaldo, o maior zagueiro da história
do nosso futebol (Também detentor do título de maior fofoqueiro da Cidade), em
1965, passou por esse pedacinho. No auge do grandioso sucesso da nossa seleção,
da qual ele era o capitão e ídolo da torcida, Ronaldo enveredou pela cachaça
Aracati e ficou por algum tempo acometido dessas alucinações.Ronaldo afirmava
que uns negrinhos pigmeus, de chifre, de rabo e com os olhos de fogo estavam lhe
perseguindo.Em plena luz do dia ele saía de casa correndo e em poucos minutos
fazia o percurso do bairro do Rosário até a Igreja do Monte num só fôlego. Durante a
corrida, em disparada, ele repetia o tempo todo: “Deixem-me em paz magote de
diabos... Voltem para o inferno de vocês... Eu não vou agora não...”Coincidiu um
dia em que eu e mais seis amigos meus estávamos brincando de jogar “sete
pecados” (Antiga brincadeira que nós fazíamos, cavando 7 buracos no oitão do
Teatro Municipal das Ribeiras dos Icós, para acertar uma bola confeccionada de
algodão e areia em um dos buracos. Quem errava era obrigado a recolher a bola, e
atirá-la nos outros companheiros para se livrar do castigo. O castigo era ficar
de costas com a cara colada na parede, enquanto os outros participantes ficavam
a 5 metros bombardeando as costas do sujeito.Há quem diga que era uma
brincadeira de índio. Mas a gente se divertia muito com isso. A bola caiu no
buraco de “Du Bico de Maria de Agostinho”. Nós todos corremos em disparada rumo
ao ponto de apoio que era a árvore canafístula centenário (Ainda hoje existe),
em frente ao sobrado de Rafael. Nesse exato momento nosso grande Zagueiro
Ronaldo vinha caminhando, fugindo dos capetinhas de suas alucinações, e entendeu
que nós estávamos correndo atrás dele.Todos nós tínhamos em média 10 anos de
idade. Ficamos assustados com aquele crioulo mais preto do que Pelé, de 2 metros
de altura, 90 km de peso, pés descalços, sem camisa, só de calção de jogador, e
tome pé. Nós aguentamos uns 15 minutos rodeando o Teatro de Icó. Em tempo de
botar os bofes pela boca. E de vez em quando Ronaldo ainda gritava: “Deixem-me
em paz magote de diabos... Voltem pró inferno..”. Aí é que a velocidade
aumentava...A Cachaça Aracati deixou nessa situação o nosso maior ídolo da
bola... Acredito eu que o inventor da cachaça, ao ver lá de cima uma presepada
dessas, deve ter se arrependido muito do mal que causou à humanidade.Conversando
com o ex-zagueiro Ronaldo, na semana passada, na calçada da casa de minha mãe,
lá em Icó-CE, nós tocamos nesse assunto. Ele nega que isso tenha acontecido. Mas
as lembranças dos meus tempos de criança são muito nítidas na minha memória.
Escrevendo isso agora parece que está passando um filme na minha cabeça. Os
momentos de terror vividos por mim e pelos meus amiguinhos naquele dia, eu
jamais esquecerei. Ronaldo tem razão de não se lembrar... Pois ele estava doido
de pedra...
Do livro: João Dino, Histórias, Estórias,Crônicas e "causos".
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