VÓ ZEFINHA NAS MISSÕES DE FREI DAMIÃO
A história que eu vou contar
aqui, agora, só quem vai entender são as criaturas que um dia, numa madrugada
nordestina, acompanharam a caminhada de Frei Damião. Orós (CE). 1964 ou 1965,
não sei precisar o ano. Eu só me lembro que Frei Damião estava peregrinando pelo
Ceará. Ela passava cerca de uma semana em cada cidade. Nossa família morava em
Icó (CE). Mas de dezembro a fevereiro de cada ano, período de férias escolares,
eu ia para Orós, cidade berço do cantor Raimundo Fagner. Em Orós, eu ficava na
casa da minha Avó, Zefinha de Adauto e do meu Avô Adauto Alves. Nesse tempo, em
frente a casa de Vó, na travessa Lima Verde, os americanos estavam construindo
um grupo escolar, obra doada pelo Governo Americano. Mestres, serventes,
armadores, pedreiros, eletricistas, encanadores e pintores eram todos da região. Mas os técnicos eram
estrangeiros. Falavam inglês e espanhol. Eles conheciam poucas palavras em
português. Eu achava muito interessante tudo que esses gringos falavam. Horas e
horas eu perdia só ouvindo. Algumas palavras em portunhol eu passei a entender
devido essas minhas horas de observações: “cambiar, capiche, ouvidar, jôi. te
vôlio bene, istantei, volveram, corazon, solo, quiero, puedo, dgenar, gracias”.
Tudo que a gente aprende nessa vida um dia se aproveita para alguma coisa.
Aconteceu comigo. As poucas palavras que eu aprendi com esses gringos me
serviram para entender muitas coisas que Frei Damião falava nas missões.Três
horas da manhã. Nesse dia o meu primo, Bonfim de Bia Laurentino, também estava
em Orós. Vó nos acordou. Jogou água no rosto de cada um. E depois de uma xícara
de café com pão de milho e tapioca, lá vamos nós para a caminhada de Frei
Damião. O velhinho andava ligeiro. Saía da Igreja Matriz às quatro horas da
manhã. A procissão circulava as principais ruas da
cidade. De volta à Igreja Matriz, começava o sermão de Frei Damião. O som da
difusora que ele falava era muito ruim. Somava-se a isso o sotaque italiano -
porque ele estava no Brasil há poucos anos –, a idade avançada e aquela voz
cavernosa. Nesse dia ele estava abordando o tema “mulheres mundanas”. Algumas
pessoas se aproximavam de mim, porque devido a minha convivência com os gringos,
eu entendia algumas coisas que Frei Damião falava. Foi não foi alguém me
perguntava: o que foi que ele disse João Dino? E eu traduzia. Minha Vó e D.
Maroca, nossa vizinha, durante o sermão ficavam cochilando. Não entendiam quase nada. E Frei Damião
balbuciava: “Ais bruxa
(Era assim que ele se referia às prostitutas) que dissollive uis “lá”... Ais
bruxa que põe finalli nus inlaci matrimoniais, isso ser pecadô, capichi? Tá im
tiempô de cambiare essa vida mundana... Jisus ser mui generoso. Inda puder lhi
sallivare da fugueira do inferno. Bruxa, vem pidir perdom a jisus nosso
sallivadô”. De repente Frei Damião levantou o tom da voz e disse: “Bruxa qui
tiver aqui nu sermom, erguei ais mão. Bruxa, jôi tô a comandare, levante ais
mão.” Minha Vó, coitada, tinha acordado as três horas da manhã. Cansada de tanto
caminhar. Estava cochilando desde o início do sermão. Ela só ouviu o final da
fala de Frei Damião: “tô a comandare. Levante ais mão”...Vó, no meio da
multidão, teve aquele susto, levantou logo foi as duas mãos. D. Maroca, estava
do nosso lado, viu quando Vó levantou as mãos, fez companhia a ela: levantou as
duas mãos também. Pense na minha agonia. Eu fiquei gritando: Vó, D. Maroca,
baixem essas mãos. E Vó perguntava: “O que diabo é menino? Deixa de me
aperrear”. Eu insisti tanto que ela resolveu me ouvir. Aí eu disse: Vó Frei
Damião está mandando as bruxas levantarem as mãos. Não é a Senhora não. Nessa
hora, umas velhinhas conversavam do nosso lado. E eu prestei bem atenção. Eram
umas carolas que olhavam para minha Vó e diziam: ‘Valha-me Deus. É o fim do
mundo. Eu jurava que D. Zefinha era a mulher legítima de Seu Adauto”. Eu disse:
tá ouvindo isso aí Vó? Meus amigos, Vó pegou ar: “Como é Joãozinho. Como foi que
ele disse?” Eu respondi: Frei Damião mandou as bruxas levantarem as mãos. Ela
disse: “E foi? Pois vamos embora prá casa... Esse “Véi” tá ficando é
doido”.
Do livro: João Dino, Histórias, Estórias, Crônicas e "causos".
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